Crítica | Hitchcock

Boas adaptações cinematográficas da vida de personalidades são aquelas que não necessariamente demonstram um apuro histórico preciso, mas que conseguem captar a essência daqueles que a inspiraram. O longa televisivo “The Girl”, que mostra a criação do clássico “Os Pássaros” e, principalmente, a relação de Alfred Hitchcock com a atriz Tippi Hedren, foi criticado exatamente pela sua tentativa de uma abordagem muito realista, que acaba apresentando um personagem completamente distinto da figura do cineasta. Já Hitchcock, longa que ilustra a produção de outro clássico do diretor, “Psicose”, não comete esse erro, o que faz com que seu resultado seja bastante superior.


Abordando principalmente a persona de Hitchcock, e não sua personalidade, o diretor Sacha Gervasi (roteirista de “O Terminal”, fazendo sua estreia no comando de um longa-metragem de ficção) consegue demonstrar de maneira bastante convincente a vida do cineasta. Sua maneira difícil de trabalhar, a obsessão pelas atrizes (em especial as loiras), seu típico humor inglês, e até o habito de quebrar a quarta parede e falar diretamente com a câmera (algo visto principalmente na sua série de TV, “Alfred Hitchcock Presents”); está tudo presente aqui – de maneira até um tanto didática.

Com exceção da descartável subtrama envolvendo o possível adultério da esposa do protagonista e da relação que faz entre Hitch (como gostava de ser chamado) e Ed Gein (assassino real que inspirou serviu de inspiração para o fictício Norman Bates), mostrando esse último como uma espécie de subconsciente do primeiro, a mente conturbada de alguém obcecado por assassinatos; o restante da narrativa é um retrato bastante fiel de uma imagem que todo cinéfilo e estudioso de cinema já conhecia. Os problemas envolvendo a produção (que foi bancada pelo próprio Hitchcock), a maneira como procurou-se manter as filmagens em segredo, e até as famosas instruções passadas aos cinemas sobre como Psicose deveria ser exibido (era proibida, por exemplo, a entrada dos espectadores depois que a sessão já tivesse iniciado); tudo é visto com apuro histórico e visual bastante preciso, mas sem grandes novidades. Nesse sentido, é fato que o filme não ofereça muitos atrativos para quem já conhece essa história, sendo (talvez) mais voltado para os novos cinéfilos.

Até porque quem conhece bem os bastidores da produção pode se sentir incomodado com algumas incongruências apresentadas. É o caso, por exemplo, da sequência em que Hitchcock estava doente e não pode comparecer às filmagens. Nesse momento, Alma (Helen Mirren, ótima), sua esposa, vai ao estúdio e grava a cena conforme havia sido planejada nos storyboards, restaurando assim a ordem no set. O que não é mostrado (e que o próprio diretor conta no excelente livro “Hitchcock/Truffaut”) é que Hitch não gostou do resultado daquela cena e a refez depois de uma maneira diferente.

Ainda assim, não deixa de ser interessante, até para os mais familiarizados, ver o cineasta preocupado que seu novo trabalho tenha um resultado similar ao de “Um Corpo que Cai”, fracasso na época e que hoje é considerado o maior filme de todos os tempos. Além disso, o longa traz uma menção interessante sobre a personalidade de Hitchcock, quando Vera Miles (aqui interpretada por Jessica Biel) compara-o ao personagem de James Stewart em “Um Corpo que Cai”, devido a sua obsessão pelas atrizes, chegando ao ponto de querer “transformá-las” (como Stewart faz com Kim Novak no filme).


Entretanto, a própria relação (supostamente conturbada) entre Hitchcock e Vera Miles não é bem desenvolvida, uma vez que a moça não tem muito tempo em tela, o que faz com que a resolução entre os dois, ao final, não tenha impacto algum. E não deixa de ser uma contradição que Miles apareça pouco, já que ela – juntamente com Anthony Perkins (James D’Arcy, idêntico) – é a verdadeira protagonista de “Psicose”, e, consequentemente, teria passado mais tempo no set do que Janet Leigh (Scarlett Johansson).

Contando com uma atuação incrível de Anthony Hopkins que, mesmo com uma maquiagem que limita seus movimentos faciais, consegue encarnar os trejeitos daquele que o originou; Hitchcock mostra de maneira leve e até bem humorada o processo de criação de um verdadeiro clássico do cinema. Ainda que esse filme provavelmente não vá trilhar pelo mesmo caminho, não deixa de ser um trabalho menos digno por causa disso.

(idem – Drama – EUA – 2012 – 98 min.)
Direção: Sacha Gervasi
Roteiro: John J. McLaughlin, com base no livro de Stephen Rebello
Elenco: Anthony Hopkins, Helen Mirren, Scarlett Johansson, Jessica Biel, Toni Collette, James D’Arcy, Michael Wincott, Danny Huston.