Crítica | Cinquenta Tons de Cinza

Não é nenhuma surpresa que o livro que inspirou o filme Cinquenta Tons de Cinza tenha se originado como uma fanfic (ficção escrita por fã) de Crepúsculo. Afinal, ambas as histórias têm personagens, estruturas e temáticas semelhantes, além de abordagens narrativas um tanto problemáticas e resultados igualmente desastrosos.

Escrito por Kelly Marcel (Walt nos Bastidores de Mary Poppins), com base no livro homônimo de EL James, o roteiro acompanha a jovem inocente, introvertida e (claro) virgem Anastasia Steele (Dakota Johnson, de Need for Speed), que conhece o bilionário Christian Grey (Jamie Dornan, da série The Fall) durante uma entrevista realizada para a faculdade. Grey logo passa a seduzir Steele, que não demora muito para cair nos seus encantos. Mas a relação dos dois não tem nada de convencional, uma vez que o bonitão é chegado em sadomasoquismo, e passa a exigir (isso mesmo, exigir) que a jovem partilhe dos seus gostos excêntricos.

Não é apenas a ideia da submissão da mulher por um macho alfa que assemelha este trabalho aos vampiros brilhantes criados por Stephenie Meyer, mas a própria estrutura do texto e a construção dos personagens. Em ambas as tramas, as heroínas têm mães ausentes, ignoram os sentimentos dos seus melhores amigos, e nutrem um amor incondicional (e quase doentio) por um homem dominador, ao mesmo tempo em que este lhes introduz a um mundo novo, até então desconhecido para elas. Além do mais, a própria atuação de Johnson repete alguns dos trejeitos mais irritantes de Kristen Stewart e sua Bella.

Mas todo o machismo de Crepúsculo é exponenciado em Cinquenta Tons de Cinza, que nos apresenta a um personagem sádico, que trata as mulheres como sua propriedade e se entrega a um comportamento controlador e violento. Sim, a ideia da submissão sexual entra para “justificar” muitas das suas ações, mas não explica como Christian já tentava controlar Anastasia antes mesmo de ela assinar o contrato (sim, existe um contrato) em que ela consente e aprova as atitudes do parceiro. Da mesma maneira, gosto de acreditar que ninguém em sã consciência se submeteria a um relacionamento tão unilateral como aquele, em que o parceiro escolhe o que você vai comer, vestir, beber e o que fazer durante o sexo (escolhas essas que você claramente não aprova), ainda mais tendo a oportunidade de sair quando quiser.

[Atenção, esse parágrafo contém spoilers, só leia se já tiver assistido ao filme] Aliás, o roteiro (e o livro) toma uma decisão covarde ao, no final, mostrar Grey como uma pessoa doente, cujas ações devem ser frutos de um trauma de infância. Tal decisão surge como uma tentativa de justificar os seus atos e para torná-lo mais atrativo para o público. Isso, porém, não é condizente com o que foi visto até então, pois seu gosto sexual surgia como um reflexo da sua personalidade bem-sucedida e controladora. Mas quando ele é apresentado como um doente, isso lhe tira toda a responsabilidade e controle sobre os seus atos. E nesse caso, fica ainda mais difícil entender como Anastasia aceita e se submete a tal situação (afinal, ceder à doença não é a melhor maneira de combatê-la). [Fim do spoiler]

Fofocas de bastidores apontam para diversas desavenças entre a escritora EL James e a diretora Sam Taylor-Johnson (O Garoto de Liverpool). Entre os rumores, fala-se sobre a intromissão de James na realização do filme e de como ela tirou o poder de decisão de Taylor-Johnson em diversos momentos. Se é verdade ou não, eu não sei, porém é inegável que Cinquenta Tons de Cinza tem problemas de ritmo e de foco narrativo, que poderiam ser resultado de tais conflitos. São idas e vindas na trama que parecem não levá-la a lugar nenhum e a arrastam sem necessidade. A própria sensualidade sugerida pela temática fica faltando, e o que sobra são diversas cenas de sexo que não se decidem se são sádicas ou românticas (ou bregas).

A direção de fotografia Seamus McGarvey (Godzilla) opta por uma paleta fria óbvia, com destaque para o cinza, que reflete a frieza do protagonista. A falta de originalidade nesse caso não chega a incomodar. Mas McGarvey exagera em certos momentos, deixando todo o realismo de lado numa tentativa de deixar as imagens mais bonitas. Um exemplo claro disso é a sua decisão de colocar os personagens quase na penumbra numa cena em que eles leem um contrato (algo que seria impossível de se fazer naquela luz).

Talvez essa história funcionasse melhor como uma paródia de Crepúsculo, com o humor disfarçando ou até justificando algumas das suas decisões narrativas. Mas a partir do momento em que tenta se levar a sério, a obra também exige isso do seu público. E aí, ao final, Cinquenta Tons de Cinza nada mais é do que uma história machista e muito mal contada.

(Fifty Shades of Grey | Romance | EUA | 125 min. | 2015)
Direção: Sam Taylor-Johnson
Roteiro: Kelly Marcel
Elenco: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Jennifer Ehle, Eloise Mumford, Victor Rasuk, Luke Grimes, Marcia Gay Harden, Rita Ora, Max Martini.