Crítica | O Voo

Filmes que se propõem a serem estudos de personagem precisam, acima de qualquer coisa, ter um personagem interessante o suficiente para merecer tal estudo. E o Comandante Whip Whitaker, de Denzel Washington em O Voo (Flight – 2012), com certeza merece essa atenção.

Já apresentado em sua primeira cena como um alcoólatra inveterado e drogado, Whip aparenta ter tanta confiança em si mesmo que não vê problemas em pilotar um avião mesmo estando sob a influência de álcool – o não impede que ele consiga realizar uma manobra quase impossível depois que uma falha mecânica faz o avião perder o controle. E embora tenha salvo praticamente todos a bordo, ele precisa responder pelas mortes ocorridas, fato que se agrava quando são encontrados indícios de álcool em seu organismo. E é a partir daí que o público passa a conhecer o verdadeiro Whip Whitaker.

Interpretado com o cinismo característico de Denzel Washington, o protagonista se mostra tão certo de si que parece não perceber a gravidade da situação. Na sua cabeça, o fato de ter salvo a vida dos passageiros anula qualquer negligencia que ele tenha cometido. Mas como os outros parecem não ver a situação da mesma maneira, ele “precisa” então manipular as pessoas ao seu redor (rezando com o copiloto apenas para deixa-lo do seu lado) ou mesmo apelar para o lado emotivo delas (afirmando a uma comissária de voo que ela só está viva por causa dele) para conseguir o que quer.

E nesse sentido, a composição de Washington é impecável. Demonstrando segurança em meio ao perigo, o comandante não hesita em pedir à comissária que deixe uma mensagem gravada na caixa preta do avião antes que ele realize a tal manobra. E como um típico alcoólatra, Whitaker se recusa a acreditar que a bebida seja a causa (e não a solução) dos seus problemas – ainda que seja claramente o motivo que o levou a perder contato com a ex-mulher e com o filho. E é interessante notar também como o protagonista procura manter o tempo todo uma certa postura de durão, mas que, em certo momento, sua pose cai quando uma única lágrima escorre do seu olho.

Retornando ao live-action depois que suas aventuras com animação (O Expresso Polar, A Lenda de Beowulf e Os Fantasmas de Scrooge) não trouxeram o resultado esperado, Robert Zemeckis mostra-se seguro no comando do longa, não deixando-o cair num dramalhão choroso (algo que aconteceu recentemente com Lincoln, por exemplo). Hábil ao conseguir estender a tensão na excelente cena da queda do avião (inserindo até mesmo um momento de calma antes do impacto) e por sua concepção do efeito das drogas, simbolizada pelo aumento no volume da música (uma decisão simples e eficaz), o cineasta peca apenas em não conseguir estabelecer uma relação convincente entre o Whip e Nicole (Kelly Reilly), uma jovem viciada que ele conhece no hospital.

Entretanto, isso nem pode ser visto como culpa do diretor, uma vez que o próprio roteiro de John Gatins (Gigantes de Aço) parece não saber o que fazer com a personagem: o texto dá bastante ênfase a ela inicialmente (inclusive detalhando sua história) e a abandona a partir da metade da narrativa.

Encarando a redenção do seu protagonista não como um objetivo, mas como uma necessidade, O Voo apresenta um retrato sério e (principalmente) não apelativo do problema do alcoolismo na sociedade atual. E se isso só já valeria o ingresso, o fato de ter um personagem tão intrigante quanto o Comandante Whip Whitaker com certeza acrescenta mais pontos a favor.

(Flight / Drama / EUA / 2012 / 138 min.)
Direção: Robert Zemeckis
Roteiro: John Gatins
Elenco: Denzel Washington, Kelly Reilly, Bruce Greenwood, Nadine Velazquez, Don Cheadle, John Goodman, Brian Geraghty, Tamara Tunie, James Badge Dale.