Crítica | It: A Coisa

Nova adaptação do livro de Stephen King explora bem o espírito da década de 1980. 

Pennywise It
Divulgação: Warner

Dois irmãos fazem um barquinho de papel. Georgie, o mais novo, enfrenta o seu medo do porão para pegar a cera necessária para o barquinho flutuar. O mais velho, Bill, não vai brincar com o irmãozinho na rua porque está doente. Georgie sai sozinho em meio a uma paisagem cinzenta e chuvosa. Ele acompanha seu barquinho deslizando pela água corrente. Mas o objeto deixa-o para trás e entra num bueiro, e, ao tentar recuperá-lo, o menino encontra o temível palhaço Pennywise. Esse encontro termina de forma terrível, com o garoto sendo arrastado para o esgoto e a chuva lavando o seu sangue do chão. Um ano depois, o clima é completamente diferente, o dia é ensolarado e as crianças na escola aparecem felizes com final do ano letivo, brincando entre si e contando piadas de cunho sexual. Esse equilíbrio entre a seriedade e a leveza, terror e humor, perdura por toda a projeção do incrível It: A Coisa.

Escrito por Chase Palmer (curta Shock and Awe), Gary Dauberman (Annabelle 2: A Criação do Mal) e Cary Fukunaga (diretor de True Detective, que inicialmente seria responsável por comandar o longa), o roteiro é baseado na primeira metade do livro de Stephen King. A trama se passa na década de 1980 e mostra Bill (Jaeden Lieberher) obcecado pelo desaparecimento do seu irmão mais novo. Ao lado de um grupo de amigos, conhecidos como Clube dos Perdedores (ou Otários na tradução nacional), ele dedica seu tempo a tentar descobrir o paradeiro do garoto, o que o leva a adentrar canos de esgoto em busca de pistas, ao mesmo tempo em que cria problemas com seu pai, que quer que ele aceite a perda e siga em frente. Porém, não demora muito para que Bill e seus amigos comecem a ter visões do estranho palhaço Pennywise (Bill Skarsgård) e de outros seres sobrenaturais que, de alguma maneira, dão vida aos seus medos mais profundos.

The Loosers Club It
Divulgação: Warner

Além de assustadora, essa representação dos medos também serve para apresentar cada uma daquelas crianças. Enquanto Bill é amedrontado pela visão do seu irmão, a jovem Beverly (Sophia Lillis) vê no sangue o seu principal temor, pois com a menstruação ela deixaria de ser a “menininha do papai” e não há como saber o que aconteceria em seguida. Mike (Chosen Jacobs), por sua vez, é atormentado por visões de pessoas queimando vivas, algo que adquire um significado maior quando pensamos no violento conflito racial ocorrido ao longo da história dos Estados Unidos (e do mundo). Já o pequeno hipocondríaco Eddie (Jack Dylan Grazer) enxerga homens doentes e infecciosos, ao passo que Stanley (Wyatt Oleff) tem seus medos relacionados à religião. Há ainda a solidão do gordinho Ben (Jeremy Ray Taylor) e o fato curioso de que o engraçadinho Richie (Finn Wolfhard) teme, justamente, os palhaços.

Ao conhecer melhor os medos daqueles personagens, o público passa a sentir simpatia por eles. E isso só funciona porque o roteiro trata-os como seres multidimensionais. Sim, eles são estereótipos clichês dos anos 1980 (o nerd, o falastrão, a garota solitária, etc), mas não se limitam a isso. A interação entre o grupo, concebida por meio de diálogos rápidos e palavrões, é hilária. E uma vez que acompanhamos a rotina deles, suas aventuras, seus dramas e as brigas com o valentão da escola (que também é mais do que aparenta ser), passamos a nos importar com o destino deles, algo essencial para o gênero de terror. Pois é justamente por nos preocuparmos com as crianças que as cenas de terror, aquelas nas quais elas são colocadas em perigo, são mais assustadoras.

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Divulgação: Warner

E é aí que o cineasta argentino Andy Muschietti se solta. Auxiliado por uma direção de fotografia sombria, ele concebe sequências assustadoras envolvendo homens sem cabeça, banhos de sangue e, é claro, o palhaço Pennywise (mais sobre ele depois). Mas Muschietti não se limita apenas em criar bons sustos (apesar de estes estarem presentes, aos montes), seu maior acerto é respeitar e homenagear a época em que a história se passa. Porque além de ser ambientado na década de 1980, It: A Coisa se parece com um filme dessa época. A camaradagem dos jovens, suas aventuras longe dos olhares dos pais, as paisagens quase bucólicas, tudo remate a obras como Os Goonies e Conta Comigo (este último, não por acaso, também é uma adaptação de King).

Mas isso não impede que o diretor insira alguns elementos modernos na narrativa. Os efeitos especiais, por exemplo, não remetem tanto aos 1980 – cuja produção era mais caracterizada pela utilização de efeitos práticos –, mas sim à própria experiência de Muschietti, que usou esse mesmo recurso no seu longa anterior, Mama. E tais efeitos não surgem de maneira gratuita; eles servem para ampliar o perigo representado pelo palhaço. Vale destacar, porém, que não são só os efeitos especiais que o tornam Pennywise mais assustador. É toda a sua concepção, da maquiagem ao figurino. A figurinista Janie Bryant definiu a vestimenta como algo que “incorpora todas essas vidas passadas de outros mundos”. Ou seja, ele não aparenta ser uma pessoa vestida de palhaço, mas sim um monstro de um tempo remoto.
O Pennywise, nesse caso, é apresentado como um monstro desde aquela primeira cena no bueiro. E o ator Bill Skarsgård compõe o vilão seguindo essa linha. Sua aparência é sinistra, seu semblante é estranho, sua risada é marcante e ele é sempre aterrorizante. Trata-se de uma abordagem distinta da interpretação de Tim Curry, em 1990, que combinava em essa ideia que mencionei antes de seriedade e leveza, de terror e humor, em um único personagem. Aqui, existe uma dicotomia. O humor fica relegado às crianças e o terror é representado pelo palhaço. E isso contribui para fazer deste It: A Coisa uma obra diferente daquela feita antes, exatamente como deveria ser, mas também – e mais importante – um excelente filme de terror.

Pennywise It
Divulgação: Warner

It PosterFICHA TÉCNICA:
Título original: It
Gênero: Terror
País: EUA
Duração: 135 min.
Ano: 2017
Direção: Andy Muschietti
Roteiro: Gary Dauberman, Chase Palmer, Cary Fukunaga.
Elenco: Jaeden Lieberher, Jeremy Ray Taylor, Sophia Lillis, Finn Wolfhard, Chosen Jacobs, Jack Dylan Grazer, Wyatt Oleff, Nicholas Hamilton e Bill Skarsgård.